Ponte Europa de Carlos Esperança
5 – Salazarismo, amnésia e impudicícia – Crónica de fim de semana
Num país imaginário vivia um tirano num palácio, onde a governanta criava galinhas e se deslocava à praça para vender os ovos que sobravam do consumo doméstico.
Era um país triste, onde grassava a fome, a doença e o desespero, onde os homens se reuniam à segunda-feira na praça pública à espera de quem lhes alugasse os braços, do nascer ao pôr-do-sol.
O tirano tinha polícias que guardavam o Palácio e vigiavam o pensamento das pessoas; tinha os padres que, nas missas, punham o povo a rezar por ele e a pedir que lhe fosse concedida longa vida; tinha a Legião, a PIDE, a União nacional e a Mocidade para fazerem a sua apologia e vigiarem quem se lhe opusesse.
Era o País do medo, da miséria e, finalmente, da guerra que o tirano impunha de botas calçadas, com a manta sobre os joelhos e a comer carapauzinhos com feijão-frade.
Às vezes matavam-se uns adversários, que eram comunistas; outras, deportavam-se suspeitos que eram perigosos. Tinha juízes que eram pulhas e simulavam julgamentos nos Tribunais Plenários, tinha um cardeal que era um biltre, confundia o fascismo com a vontade divina, e milhões de vítimas que se conformavam com a tristeza, à espera de que a morte os libertasse do cárcere da vida.
Nesse país a mortalidade infantil era a maior da Europa, o analfabetismo ocupava o lugar cimeiro e, para morrer, eram os autóctones os primeiros a ser chamados.
O tirano morreu porque uma cadeira fez a tarefa que o povo falhou e o ciclo biológico cumpriu-se sem que lhe fosse feita justiça.
Foram morrendo os que o tirano não matou e outros, a quem nada disseram, nasceram. O tempo não se limita a eliminar pessoas, mata sobretudo a memória coletiva.
Assim, o país que resta divide-se entre os que viveram o pesadelo e os que vislumbram na náusea de um cadáver o mítico D. Sebastião na demência de impérios sonhados e paraísos inventados nas agruras do passado.