Carlos Esperança
Não me matem a burra, por amor de Deus!
(Dado que já está disponível nas livrarias, interrompo hoje as crónicas de fim-de-semana que o livro encerra)
Na mitologia grega Anteu necessitava de mergulhar as mãos na terra para recuperar as forças. Eu, que não sou deus, nem crente, sinto a necessidade dos mitos. E vou procurar nos sítios que agonizam o resto de vida que ali jaz, e encontrar no húmus das minhas origens as forças de que careço.
Abalámos muitos dessas terras, que eram viveiros de gente e são hoje a antecâmara da morte dos que regressam para ficar.
Já não se discute a água da presa, com a sachola, nem se guardam alfaias religiosas com a escopeta carregada e a navalha, de ponta em mola, à mão. A fé esvaiu-se, não se mede em decibéis, oferendas ou novenas, nem em quantidade de dias de exposição do Senhor.
Em tempos, quando o estandarte da igreja dormia nas fragas que separavam o Freixinho do Lamegal, a anexa que disputava à sede de freguesia a glória de exibir o seu pendão para proteger as searas, com moços possantes a defenderem a crença e o estandarte, que os costumes mandavam revezar, e que o impulso da fé desrespeitava, eram as procissões que tinham primazia sobre as outras manifestações litúrgicas. Hoje falo do concelho de Pinhel e podia falar do Sabugal, Almeida ou Figueira de Castelo Rodrigo, terras de onde guarda memória o menino que se fez velho.
O meu tio Manuelzinho contava-me coisas de estarrecer, quando a fé ainda vicejava nas aldeias e os padres abundavam para a liturgia. Não mais esquecerei a graça com que me contava a procissão do Carvalhal da Atalaia, que acabou mal. Os andores, os devotos e a fé não cabiam nos limites do casario. Era preciso percorrer caminhos de terra batida, na peregrinação cuja distância correspondesse à piedade dos paroquianos.
Foi num mês de agosto, ainda não havia francos franceses, suíços e marcos a desafiar a competição dos emigrantes. A procissão saiu do povoado para a ronda tradicional do Senhor dos Passos, com o padre sob o pálio, a resguardar a tonsura e a custódia, com os mordomos aprumados e os fiéis em filas, separados por género e alinhados por idades. Rezas e cânticos alternavam com algum latim para fazer brilhar o pároco enquanto os anjinhos eram admoestados para não falarem, pelas catequistas que os guardavam.
Num desses verões, já a procissão tinha invertido a marcha a caminho da aldeia quando, inopinadamente, se armou uma trovoada que parecia o dilúvio, sem a arca de Noé, para se recolherem nela os bons, enquanto a terra se inundava.
Os mancebos pousaram o Senhor dos Passos, enquanto os andores pequenos seguiram o exemplo, e os guiões foram encostados à árvore mais próxima. O padre, com a custódia, fugiu e manteve a proteção do pálio, com os que empunhavam as varas a esticar o pano, transformado em guarda-chuva coletivo. Os anjinhos, na pressa, perdiam as asas e cada paroquiano procurava uma árvore de copa ampla, com a população dispersa pelo campo e a parafernália pia abandonada no caminho.
Já se clamava «milagre!» quando o sol, de repente, substituiu de novo a chuva que se afastou a desgraçar videiras e a tornar inútil a vindima. Os paroquianos lá voltaram ao sítio donde fugiram e, ao chegarem, o horror deixou-os apopléticos.
Com a chuva esboroou-se o Senhor dos Passos que alguns fiéis haviam de julgar sólido, quiçá com músculos e ossos, desfeita a farpela puída pelo tempo, onde o manto refulgia. Do interior saiu a palha que lhe dava forma e uma burra, atraída pelo cheiro, mastigava, com os cascos sobre o manto e a pachorra de quem nasceu sem entendimento para a fé.
Descoroçoados, atiraram pedras ao animal, que insistia em mastigar a palha tantas vezes benzida. Com tal sanha, que, da multidão, uma mulher implorou, por amor de Deus, que não lhe matassem a burra, enquanto esta se afastava a trote, a mastigar o último naco do Senhor dos Passos.