carlos esperança
8 – Bandeira & Pistoleiro – Crónica de fim de semana
Em fevereiro de 1970, recém-chegado da guerra colonial, conheci o Sr. Bandeira, por intermédio de amigos oriundos do distrito da Guarda, no Café Nova York, onde nos reuníamos ao fim da tarde e após o jantar, enquanto ele corrigia a oscilação das mesas e procurava estudar, desígnio que a instabilidade emocional lhe impedia.
O Bandeira, eterno aluno da faculdade de Direito, entrava no Café com um Código debaixo do braço e abanava as mesas disponíveis para verificar se buliam. Percorria o Café e, desalentado, voltava sempre à primeira mesa para meter cunhas de papel até lhe conferir a firmeza possível. Não se dava por satisfeito, mas resignava-se. O estudo é que não rendia, com aquela apoquentação de a mesa poder baloiçar. Há anos que mantinha o ritual e o inofensivo desequilíbrio mental na procura solitária da sua mesa.
Aos conhecidos dava por conselho que andassem prevenidos com uma pequena esfera para o caso de terem de alugar um quarto ou apartamento, aconselhando-os a fugir de zonas em que o soalho fosse oblíquo, como a esfera comprovaria, rolando.
Um dia, o Tó Zé Almeida tinha as pernas cruzadas e movia um pé enquanto o Bandeira se debruçava sobre um livro na mesa próxima. Num determinado momento levantou-se, irado, e gritou: - Não se pode estudar aqui! - É comigo! – balbuciou desconfiado o Tó Zé, e o Bandeira disse: - Pois é, não está quieto com o pé! E o Tó Zé assentou os dois pés no chão, para não perturbar o estudo ao frágil aluno de Direito que caminhava para os cinquenta anos.
A conversa foi prosseguindo entre o grupo habitual e mais de uma hora depois o Bandeira repete o desabafo anterior, não se pode estudar aqui, e o Tó Zé a verificar o sítio dos pés e a dizer-lhe, mas eu tenho os pés quietos, e o Bandeira a replicar, mas eu estou sempre à espera de que volte a cruzar as pernas e a abanar o pé.
O Bandeira tinha um amigo de idade próxima, colega de Medicina, curso que acabaria com garbo e estágio, mas cuja inscrição na Ordem foi logo suspensa pelo claro perigo que representava para a saúde pública, o que constituiu uma decisão inédita. Era o Pistoleiro, assim designado por ter ameaçado um professor com a pistola, objeto que lhe seria confiscado antes do exame e devolvido, a seguir, para comemorar com tiros de alarme a façanha da aprovação. Era um frequentador assíduo da cantina da Cidade Universitária, onde a diferença de idades o não poupava ao gozo de colegas, com menos três décadas de existência.
Uma vez o Bandeira foi a casa do Pistoleiro buscar um livro e, apercebendo-se da sua ausência, pediu à senhoria que o levasse ao quarto, tendo obtido uma recusa por não estar autorizada a fazê-lo, segundo alegou a senhora.
O Bandeira, apesar da sua labilidade e da aversão às mesas oscilantes, aos soalhos oblíquos e aos pés que abanavam, não era habitualmente implicativo nem mal-educado; mas descontrolou-se e, antes de se retirar, insultou-a com o vasto reportório de impropérios que lhe ocorreram, enquanto a pobre mulher se desfazia em lágrimas.
Quando o Pistoleiro chegou, ainda chorosa, queixou-se-lhe dos insultos, repetindo um a um todos os palavrões que a amachucaram. Ouvida em silêncio, com toda a atenção, com a estima e consideração que a senhoria lhe merecia, o Pistoleiro disse: vou já tratar disso. Saiu logo e foi a casa do Bandeira, onde o encontrou, e pediu para chamar à sua presença a senhoria dele. Quando esta chegou, o Pistoleiro, sem tir-te nem guar-te, começou a insultá-la com os mesmos impropérios, quiçá pela mesma ordem, irado, só se apaziguando quando despejou o saco de injúrias que trazia.
Depois, considerando ter feito justiça, aplicada a pena de Talião, com a senhora estupefacta, despediu-se cordialmente do Bandeira e regressou a casa.
Jornal do Fundão em 6.06.2007
In Ponte Europa – Livro em preparação para editar em 2016