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baú das alembranças

baú das alembranças

A Minha Guerra

A minha guerra.

 

   Passava por mim a grande velocidade o ano de 1967 e eu já com 20 anos no pelo, fui obrigado pelo sistema politico de então a dar o nome para ser referendado e constar da lista dos gajos que estavam bons ou disponíveis para dar o coiro pelo  país, pela Pátria ou fosse lá pelo que raio fosse.
Era preciso é que estivesse bom para que na plenitude da sua vida em vez de ajudar o país a desenvolver-se, estivesse bom para matar ou morrer por uma coisa que não era sua nem devia preocupar-se com ela.

Neste caso era mais para dar o coiro para salvar o coiro de outros filhos da puta que viviam nas suas torres de oiro e nos seus castelos de diamantes.

Fosse como fosse, o que tem que ser tem muita força e como eu não tinha força nenhuma, nem tinha amigos poderosos tive de gramar a pastilha e lá tive de ir dar o corpo ao manifesto.

Tendo dado o nome em 1966, 18 anos, como mandava a lei  fui chamado em 1967 para passar por uma inspeção como se faz aos cavalos e para me ver se tem dentes bons e patas sólidas e para me dizerem que estava bom tanto para matar como para morrer, mas que era muito melhor para morrer, também me mandaram abrir as nádegas para ver se tinha hemorroidal ou se alguma coisa tinha por cá andado a esfurancar, era magrinho franzino e não muito alto, 1,68 mt , 57 quilos mal aviados. Ou passava pelo intervalo das balas ou morria ao primeiro sopro de uma. Tanto fazia.

Talvez uma das minhas poucas alegrias é que a maioria dos meninos bem, com pais e amigos poderosos, também lá andavam a dar o litro. 

Mandaram-me para Aveiro onde me instalaram no dia 22 de Outubro de 1968 num  antigo quartel de cavalaria ou outra coisa qualquer e onde me iriam fazer permanecer oito semanas a correr para trás e para diante sem eu alguma vez saber onde é que íamos parar.

 E a verdade é que nunca fui ter a lado nenhum.

Normalmente durante estas oito semanas eramos preparados, manipulados e manobrados física e psicologicamente para termos a ideia fixa de que o que estávamos a fazer era o melhor para o nosso país, para nós e para a  nossa família, e eramos constantemente injetados com retórica a favor da guerra, e que nós é que eramos os bons e os outros eram todos uns mausões do caraças.

Eram tão maus, tão maus, que nós tínhamos de os matar.

Não quero, não posso nem devo com esta pequena crónica  tentar escamotear o que foi a guerra pela libertação nas antigas Colónias nem quero deixar de lembrar o sofrimento que esta causou a centenas  de milhares de homens, mulheres e crianças deste país nem dos outros países nela envolvidos.

Tal como dizia, fiz a recruta preparação física, psíquica e intelectual durante oito semanas em Aveiro e estava preparado para no fim desta ser despachado para uma zona de combate como acontecia a mais de 90% dos meus camaradas.

Quis o destino, que é uma das poucas coisas em que ainda acredito, já que não tinha amigos ou conhecidos de alta patente no meio militar e nem no meio civil, como já disse atrás, que no fim da recruta me tivessem mandado tirar a especialidade de caixeiro, fosse lá o que isso fosse.

Talvez porque constava no meu curriculum que tinha sido marçano dos doze até aos dezoito anos, mas não tenho a certeza se teria sido o motivo.

E assim terminada a recruta sou enviado para  Escola Prática da Administração Militar em Lisboa para frequentar o curso de caixeiro e consequentemente a escola de cabos que durou mais oito semanas, terminando no fim de Fevereiro de 1969. 

Findo o curso com o melhor aproveitamento possível, sou enviado par o Regimento de Cavalaria 4 em Santa Margarida da Coutada, que se situa no Tringulo Militar de Tancos e onde passei cerca de quatro meses à linha. Que é como diz, a fazer rondas, guardas à Polícia, guardas à porta de armas, guardas ao paiol e faxinas e que no fim desses quatro meses quando estava de guarda à carreira de tiro deitado no num pinhal à sombra dos pinheiros a observar as cotovias apareceu um Willis com um sargento a informar-me para arrumar as minhas coisas e levantar acampamento para ir gozar dez dias de férias  que já estava marcado o embarque para Moçambique.
Mas coisa que só vim a saber depois de lá estar..

Pensei para comigo:

Meu filho, desta já te safaste, Não vais andar aos tiros, eventualmente também não vais morrer e também não vais matar ninguém na guerra.

Um caixeiro serve normalmente para estar atrás das trincheiras a tratar dos mantimentos e todo o material a enviar para os camaradas que se encontram na zona de combate e zelar para que esses camaradas tenham o mínimo de condições, quer de bem estar, quer alimentares, quer de saúde.

Embora tivesse sido informado que o meu destino já estava traçado, ninguém sabia para onde iria ser enviado nem quando.

Fui para casa dos meus pais que como é lógico ficaram com o coração nas mãos e preparei-me para gozar os dez dias de férias que a lei previa antes de embarcar.

Não fiquei dez dias, fiquei mais, passados alguns dias recebi um telegrama para me apresentar no Quartel General de Adidos em Lisboa para levantar o equipamento camuflado e embarcar no Paquete Príncipe Perfeito com destino à Zona Militar de Moçambique, Lourenço Marques. Hoje Maputo

Não embarquei no paquete Príncipe Perfeito como estava previsto, mas embarquei passados uns dias no Paquete Infante D. Henrique no dia 21de julho de 1969.tendo passado o meu 22º aniversário a bordo entre Lisboa a o Funchal, mas nem dei por isso.

Vigem turística maravilhosa a bordo de um paquete de cruzeiro com escala no Funchal, Lobito, Luanda, Cape Towne e Port Elizabeth com piscinas, cinemas, jogos de salão, baile e sobretudo miúdas para dançar.

Destino: Manutenção Militar de Lourenço Marques destacamento do Bairro do Jardim Zoológico, a meia dúzia de quilómetros do centro da cidade. 

O Serviço: uma verdadeira trabalheira.

Sob as ordens de um tenente "Chico" quase com idade para ser meu avô, organizar a segurança e vigilância dos armazéns onde eram depositadas os milhares de toneladas de géneros alimentícios que chegavam de Portugal e de outros países amigos, nos barcos e que depois a partir daí seriam repartidos medidos, pesados, etc, enviados para todas as unidades que se encontravam espalhadas por todo o território desde Mocímboa da Praia a norte até ao Rovuma a sul como rezavam os manuais escolares.

E pronto.

Chegado aqui, fiquei por Lourenço Marques cerca de vinte e seis meses.

Vinte e seis meses de doce remanso e dolce farniente mas que me exigia estar atento à segurança das instalações e pessoal e ter sob minhas ordens e a minha responsabilidade cerca duas dúzias de  homens para fazer essa mesma segurança.

Não havia serviço de escala nem tal era necessário.

Como elementos militares eramos  um Major, um Tenente, um Primeiro Sargento, dois Furrieis, quatro 1º Cabos e cerca de vinte soldados que dividíamos as guardas a nosso bel prazer e se um precisava de ir à cidade ou queria laurear a pevide, outro qualquer podia ficar a substituí-lo.

Havia mais cerca de cinquenta pessoas naquele departamento da MM mas era pessoal civil que fazia parte do quadros civis e com os quais não tínhamos nada a ver.

Assim fiquei pela cidade e como tinha muito tempo disponível aproveitei para me matricular numa escola particular privada e fazer o 1º e 2º ciclo do liceu que agora equivale ao nono ano. 

Os dois anos e dois meses na cidade passaram-se da melhor maneira possível, com a calma possível e com o que permitiam os novecentos e trinta escudos mensais do ordenado de 1º cabo.

Lourenço Marques, era já nessa época uma cidade bastante cosmopolita e muito bem arquitetada. 

Pelos salões da cidade passavam-se as noites de sábado nas soirés e a tardes de domingo nas matinés dançantes.

Não havia espaço  para corridas de grande fôlego porque para além de sermos mais conhecidos que Jesus Cristo, toda a gente sabia que eramos militares e o respeitinho é muito bonito, o dinheiro também era pouco embora esse não fosse problema porque nos salões pagava-se uma entrada simbólica,  mas eramos constantemente assediados para participar em sorteios ou leilões para angariação de fundos.

Havia também várias coletividades e associações desportivas onde passávamos grande parte do tempo livre a ver jogos ou a dançar, 

Ruas e avenidas todas em linha reta, largas, paralelas e perpendiculares, onda na parte mais antiga pululavam esplanadas, cabarés, bares e clubes noturnos sempre à pinha com turistas brancos sul- africanos e rodesianos que iam à procura do divertimento que lhes era proibido na sua terra por causa da lei do Apartheid.

Por vezes, sabendo eles também que eramos militares, convidavam-nos para as suas mesas e saíamos de lá já bem aviados com a cerveja e o wisky a correrem.

Como quase sempre andávamos fardados, e mesmo que  não andássemos não passávamos despercebidos a Polícia Militar não nos passava cartão e muitas vezes fechava os olhos e também porque o nosso posicionamento na manutenção nos colocava em situação privilegiada, já que quase todos os dias as patrulhas da PM em serviço, passavam por volta das três da manhã pela manutenção.

Abríamos o portão para esconder o  Land Rover e tinham sempre umas latas de conserva, salada de tomate e alface, um pão do tipo saloio ou casqueiro e um copo de vinho para aguentar a ronda até de manhã e como se costuma dizer, uma mão lava a outra e as duas lavam a cara.

Houve ainda tempo para dar alguns passeios e fazer algumas saídas ao exterior, como foi uma sardinhada assada no carvão na magnifica praia do Bilene, uns passeios sem grande interesse a Ressano Garcia, posto fronteiriço com a África do Sul, à Manhiça ou à Matola, pequenas cidades situadas a pouco mais de uma hora de Lourenço Marques.

Poder-se-há dizer que se não disparei um tiro não faço a mínima ideia do que era a guerra e do que se passava nas frentes de combate, mas faço.

O comandante da Manutenção, onde eu me encontrava, Sr major Arrobas da Silva tinha um filho militar no QG Quartel General em LM prestes a terminar o serviço e então para o filho ser desmobilizado fez um acordo com o comandante do QG e eu fui substituir o rapaz.

Passei assim mais de três meses na Secretaria do QG a despachar correspondência, a receber correio, ou a dar informações sobre o paradeiro da rapaziada  que andava lá para cima, que mudava de poiso e que se esquecia de avisar os pais que como é lógico andavam preocupados  e  com o coração nas mãos quando não tinham noticias dos filhos.

Eu recorria aos ficheiros para saber onde estavam colocados, contactava os comandantes via rádio  e enviava uma contrafé a obrigá-los a entrarem em contacto com a família, sob pena de castigo.

Também tinha acesso a correspondência confidencial entre comandos e sabia dos encontros imediatos com o inimigo e das baixas tanto de um lado como do outro assim como do material apreendido ou perdido.

Tinha também como tarefa, servir de escrivão aos advogados militares na elaboração de processos.

Sacanas, entenderam que eu tinha uma caligrafia bonita e lixaram-me a vida. Passava horas e horas a escrever relatórios à mão.

Finalmente, fim de comissão a 2 de outubro de 1971 vinte e seis meses depois de ter chegado.

Regresso a Lisboa no Navio Pátria de onde desembarquei a 21 depois de uma viagem bem agitada com escalas em Port Elizabet, Durban, Luanda, Lobito e São Tomé, entrega da farda no QGA Quartel Geral de Adidos na Ajuda e desmobilização a 23 de Outubro de 1971, trinta e seis meses e um dia depois de ter assentado praça  

Foi duro. Foram quase dois dias a levar porrada com ondas de mais de dez metros e que nos faziam andar em bolandas no convés ou nos salões do barco.

Cheguei a Lisboa no dia 21 de outubro de 1971 e fiquei hospedado uma noite no Quartel Geral de Adidos na Ajuda e disputar com os percevejos um espaçozinho para dormirmos sem interferir uns com os outros , mas eles venceram pelo número e não me deixaram pregar olho.

Logo pela manhã e após ter tomado um pequeno almoço ligeirinho constituído por um copo de leite com qualquer coisa negra que parecia café e um casqueiro com manteiga, entreguei tudo o que me tinha sobrado de dois anos em África e embarquei para  a minha aldeia sem avisar ninguém da minha chegada.

Ou seja: Três anos e um dia depois de ter entrado para o SMO Serviço Militar Obrigatório regressei à aldeia que me viu nascer.

Como tinha saído de Maputo com boas temperaturas,  nem me lembrei de que cá já era outono e já tinha começado o frio.

Cheguei à aldeia cerca das dezanove horas com uma camisinha casca de ovo e a tremer de frio.  

Não tinha à minha espera a fanfarra, além de eu não ser ninguém importante não me posso admirar porque não avisei. 

Rapidamente a minha mãe, o meu pai e os meus irmãos mais novos se abraçaram a mim a chorar de alegria por me ver chegar são e salvo mas ao mesmo tempo de uma enorme tristeza porque havia pouco mais de dois meses que tinha morrido de doença prolongada o meu irmão  mais novo que eu e que iria fazer 21 anos daí por um mês e que se fosse vivo e com saúde possivelmente iria a seguir enfrentar os mesmos desafios o outros piores.

Foram momentos de grande consternação que se viveram naquele momento mas passados alguns minutos começaram a chegar vizinhos e amigos para me darem as boas vindas.

Estava também um dos meus irmãos mais velhos que nesta altura já se encontrava emigrado em França mas que veio à terra para estar uns dias com a família e prestar algum apoio. 

  

 

 

 

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