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baú das alembranças

baú das alembranças

Carlos Matos Gomes

Comitre: Oficial que superintendia os forçados das galés. Os salários da administração da Caixa. A questão não tem nada que ver com estes, nem com os anteriores. A minha questão tem a ver com o sistema de condenados às galés em que o sistema bancário internacional colocou os cidadãos que eram livres. Desde a antiguidade os poderosos escravizaram os vencidos e de entre os vencidos, os últimos eram designados por heretes, os condenados às galés, a remar nas galés. As galés foram os navios que dominaram o Mediterrâneo durante séculos, na guerra e no comércio. O segredo do seu êxito estava na velocidade que os remadores amarrados aos remos, três, cinco ou até sete, conseguiam imprimir. O filme Ben Hur tem cenas nas galés que ajudam a perceber como o sistema funcionava. Quem conseguia a velocidade das galés e a sua manobra era uma figura chamada Comitre, auxiliada por sota-comitres, encarregada de estabelecer o ritmo da remada à custa de chicotes e de tambores. O grande problema do comitre era estabelecer o melhor ritmo dos escravos e dos condenados sem os esgotar. É exactamente do problema dos especuladores financeiros, dos ministros das finanças, dos administradores de bancos centrais e do Estado: como extrair dos contribuintes (os condenados às galés) tudo o que eles têm, sem os matar de exaustão (financeira, no caso)? Um bom comitre, com os seus sota-comitres tem de ser bem pago, claro. O chefe dos comitres, Draghi é principescamente bem pago, assim como os seus sota-comitres, entre eles Constâncio. O Costa do Banco de Portugal também não passa de um marcador do ritmo dos condenados.Assim como o novel Domingues, da Caixa. Estes especialistas da chicotada (tributária), do ritmo da remada (financeira), do limite de vida dos condenados são hoje gente apresentada como respeitável. Tão respeitável que são pagos como alguém que executa um trabalho respeitável, e não, o de extorquir a tipos amarrados por correntes aos impostos o máximo que estes possam dar. Eles, do Draghi ao Costa do BP e ao Domingues da Caixa, são os comitres, os capatazes encarregados pelos comandantes e almirantes e chicotearem os condenados para lhes extorquírem as últimas forças. O sistema especulativo de fabricação de dinheiro faz destes algozes figuras centrais do capitalismo na atual vertente. Os atuais donos das galés, os atuais negociantes de escravos, os atuais juízes que condenam os devedores a serem remadores, fazem hoje o que desde a antiguidade até à baixa idade média não fora conseguido: colocarem os condenados a pagar a quem os chicoteia! Estamos a pagar a todos eles. Este Domingues da Caixa é o último dos comitres e por isso aqui fica o ai depois da chicotada.

Foto de Carlos Matos Gomes.

Cronicas de Carlos Esperança

18/80 – Veredas do contrabando, trilhos da sobrevivência (Crónica de fim de semana)

Quando percorremos já parte substancial do caminho da vida que nos coube e falta o que ignoramos, assalta-nos a vontade de exumar da memória as pessoas que eram amigas dos nossos avós e foram nossas também.

Em meados do século passado, o contrabando era um crime que tinha uma força policial dedicada para lhe pôr cobro. Não me refiro à candonga de divisas, de favores e de honra, que essa não tinha quem a refreasse, e não faltava quem a protegesse.

Menciono o contrabando de azeite no dorso de machos e mulas que caminhavam lestos com dois odres, seguidos do dono. Ou de pães de trigo amassados ao torno – «trigo espanhol» –, comidos à mesa dos ricos e, em dias de festas canónicas, dos remediados, que chegavam de Espanha nas costas vergadas de aldeãs.

Vinham cortes de pana encomendados e cujo lucro se sumia nas cargas apreendidas, chocolates da Senhora das Candeias, galletas, alpercatas, caramelos e outros bens escassos, com que mulheres determinadas cruzavam a raia de Portugal até à casa do consumidor.

Ver na luta pela sobrevivência mulheres de corpo tão débil e coragem tão forte era um apelo à cumplicidade com as autoras do delito e à suspeita e animosidade para com a Guarda-fiscal. Como poderiam ser delinquentes a senhora Margarida e a sua cunhada Ana, que iam a pé da Malhada Sorda até Almedilla para satisfazerem as freguesas, e subsistiam com os escassos ganhos do arriscado viver? E que dizer da Ti Esperança e da Ti Maria Josefa, que iam da Miuzela do Côa, e de tantas outras, com o corpo alquebrado dos fardos e as alpergatas rotas pelas asperezas do caminho?

Também havia homens que andavam na candonga, vivendo os mesmos medos e angústias, sem lhes minguar o tempo para encherem de filhos as mulheres, próprias e alheias. Mas fui sempre mais apiedado do sacrifício e tormentos das mulheres, convicto de que seriam nelas mais sofridos os espinhos.

Faziam seis léguas, calcorreando os trilhos da sobrevivência, com o temor dos guardas que lhes tolhiam o passo e assaltavam as cargas. Iam em grupo e voltavam desgarradas dezenas de metros para que a infelicidade de umas as não atingisse a todas. Depois, lá estava a solidariedade das que escapavam a abonar as vítimas que teimavam no ramo a fazer pela vida.

Era assim, vergadas ao peso e ao medo, que viajavam a pé num raio de três ou quatro léguas que percorriam nos dois sentidos. Para irem mais longe, até à cidade da Guarda, onde eram mais endinheiradas as freguesas e substanciais as encomendas, iam as pobres contrabandistas no trama. Embarcavam no apeadeiro da Quinta da Ribeira dos Abutres, crismado como Aldeia de S. Sebastião depois de uma febre pia que percorreu o país. Ou na Freineda e no Noémi, após um sinal enviado do comboio de que não havia perigo, isto é, não iam guardas-fiscais a bordo.

Depois eram rápidas a repartir as cargas por passageiros conhecidos e a defendê-las de um eventual assalto policial que podia surgir mais adiante. Nem sempre venciam as contrabandistas, às vezes ganhavam os guardas surgidos noutro apeadeiro. Confiscavam a mercadoria e indagavam quem era o dono, perante uma carruagem de mudos. Se tudo corria bem, quando o comboio abrandava a marcha, a duas ou três centenas de metros da estação da Guarda, rolavam as cargas bem-acondicionadas para uns lameiros onde iriam depois procurá-las.

Era neste jogo do gato e do rato, um jogo de que dependia a sobrevivência das contrabandistas e dos guardas-fiscais, que circulavam as mercadorias e se respondia às urgências de uma economia de subsistência e à ineficácia dos circuitos comerciais.

Despachados os artigos e arrecadada a paga, esperava-as o caminho inverso, a passagem por casa, onde havia trabalhos domésticos em atraso. E, de novo, com um parco farnel que tragavam em andamento, lá voltavam aos trilhos bem conhecidos, labirintos que em noites de Lua Nova só as mais experientes atinavam. E o cuidado que era preciso ter para evitar tropeções nas pedras largadas na última passagem ou nas gestas atadas para que nelas esbarrassem os guardas. Quantas vezes, por mor disso, nelas se estatelavam as próprias.

Eram ásperos os trilhos do caminho, tanto quanto os da vida que lhes coube, a epopeia sem alternativa, e o destino que o instinto de sobrevivência e a geografia lhes marcaram. Ainda hoje sinto os beijos meigos dessas mulheres que me confiavam o segredo do esconderijo das cargas, detrás da lenha do palheiro dos meus avós, e me deixavam a colocar molhos de vides para melhor as dissimular, enquanto repunham as forças com meio trigo da Miuzela, uma posta de bacalhau frito e meio quartilho de vinho, antes de perscrutarem fardas nas redondezas, recuperarem as cargas e retomarem a marcha.

Jornal do Fundão - 19.09.2008

In Ponte Europa – Livro a editar por Âncora-editora. Lançamento: 19-11-2016, às 16H00 – (Pólo de S. Bartolomeu da União de Freguesias de Coimbra, Av. Fernão de Magalhães, em Coimbra, a 30 metros ao Hotel Oslo)

Cralos Esperança

17/80 – A Queimadela do Antraz (Crónica de fim de semana)

Era Verão. Na rua, junto à casa dos meus avós maternos, o tanoeiro do Jardo afeiçoava tábuas de carvalho antes de as equilibrar sobre um calhau, à volta do qual crepitava uma fogueira de lume brando, e de lhes amarrar pedras nas extremidades para as vergar adequadamente e produzir aduelas.

Com uma giesta, mergulhada num caldeiro de água, molhava regularmente as tábuas expostas ao calor e logo voltava à plaina e à enxó a desbastar outras que se seguiriam, para tomarem a forma ajustada e substituírem as que o tempo e a acidez do vinho tinham carcomido num tonel de cem almudes.

Pela rua seguia o Ti Portas, do Sabugal, soprando a gaita de capador, à espera de porcos, vitelos, cães, gatos e outros machos cujos donos decidissem pôr termo à alegria dos bichos. Fosse para preservar o sabor da carne dos primeiros ou para obrigar os outros ao sedentarismo que o cio não consentia.

Os animais de grande porte eram levados ao tronco do ferrador. Os cães e gatos eram entalados entre uma porta e o batente, enquanto duravam a cirurgia e os queixumes.

De estômago composto, com meio trigo, uma peixota de bacalhau frito e meio quartilho de vinho, retemperadas as forças, as contrabandistas abandonavam a taberna para retomarem as cargas e rumarem ao destino, com alpercatas, pana, chocolates, bolachas e outras encomendas.

Um presságio afastou-me do tanoeiro para subir as escadas de casa, a correr, depois de ver entrar o Ti Capas, o Medo, o Zé Mateus e o Bodo, que eram habituais nas fainas agrícolas, mas não era hábito, àquela hora, entrarem em casa dos meus avós.

O meu avô andava doente, consumido por um antraz que lhe aparecera na barriga, mas resignado, habituado ao sofrimento e aos baldões da sorte. Fora cedo para a Argentina a bordo de um navio, em cujo porão viajou para voltar tão pobre como partira. Pouco tempo depois de casar não o matou um carbúnculo porque lho queimaram e, com ele, o nervo ótico que lhe cegou um olho.

No lume, o cabo de um garfo de ferro, com os dentes virados para fora da lareira, incandescia. Olhei o meu avô que, da cadeira onde se sentara, me devolveu um olhar de ternura, afeto reservado ao primeiro neto, enquanto a avó Anunciação, com voz doce, me dizia para ir brincar.

Saí com vontade de chorar. Pressenti que iam fazer mal ao avozinho, mas não percebi o silêncio, nem a presença dos homens, nem o lençol de linho feito em tiras. Cruzei-me nas escadas com o António Ferreira, o último a chegar, talvez atrasado por mor de alguma besta que estivesse a ferrar.

O António Ferreira era ferrador por necessidade e clínico por vocação. O fogo era o tratamento que aplicava na ciática e noutras moléstias, e não lhe faltavam clientes. Suceder-lhe-iam o Jaime Gil e o Américo Ferrador na arte de aparar os cascos dos bovinos, muares, burros e cavalos, e no jeito de lhes afeiçoar e pregar as ferraduras, mas nunca o imitaram na clínica.

Nessa tarde, ao descer as escadas, afastava-me ansioso do ambiente pesado que se vivia na cozinha dos meus avós e regressava, indiferente, a olhar o tanoeiro. Só percebi o que se passava quando um grito lancinante do meu avô, logo abafado por alguma almofada, me fez associar aquele cabo de garfo em brasa, à presença dos trabalhadores e à visita do ferrador.

Vi descer o António Ferreira, que tinha sido o último a entrar e era o primeiro a sair, a falar sozinho, queimei bem a raiz, queimei-a bem, e lá foi rua acima, de regresso a outros afazeres.

Aflito, subi as escadas, duas a duas, a correr, num esforço apreciável para pernas tão curtas. O avô Paulo já estava na cama e a minha avó pediu-me para não o incomodar. No ar, um cheiro doce a carne queimada agoniava-me e eu só pensava em ver o meu avô, em dar-lhe um beijo, em conversar com ele; mas só no dia seguinte pude vê-lo, com muita febre, feliz por me ver, esquecido das dores, contidos os gritos e gemidos que durante toda a noite se ouviram.

Ainda viveu mais uma dúzia de anos, número igual ao das férias grandes, Natal, Carnaval e Páscoa, em que a ternura dos avós e a autonomia que me concediam, criaram em mim o gosto pela liberdade e formaram o cidadão.
Até ao dia 2 de março de 1961, quando, da cama onde agonizava, o avô me agarrou a mão, balbuciou de forma quase impercetível, Caarrlos, e se despediu. Era noite.

 

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